sexta-feira, abril 11, 2008

A mentira veste vermelho.
















O dossiê com gastos sigilosos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso está há mais de quinze dias sem pai nem mãe. Revelado por VEJA há duas semanas, o dossiê é uma compilação de despesas do ex-presidente, da ex-primeira-dama Ruth Cardoso e de alguns de seus principais ministros entre 1998 e 2002. O papelório foi produzido na Casa Civil da Presidência da República e usado para intimidar parlamentares que pretendiam investigar despesas do presidente Lula e de sua família na CPI dos Cartões. Desde que VEJA comprovou a existência do dossiê, o governo já apresentou inúmeras versões para o mesmo fato. Na semana passada, surgiu mais uma.
O governo levantou a suspeita de que o dossiê teria sido produzido por um funcionário infiltrado pela oposição. O presidente Lula chegou a afirmar que as informações sigilosas foram "roubadas" e que a ministra Dilma Rousseff, a chefe da Casa Civil, é vítima de "chantagem política". Lula não disse quem roubou os dados nem explicou por que a ministra estaria sendo chantageada. Por que o hostil "ladrão" roubaria dados da era FHC e não da era Lula é apenas mais um dos enigmas que as explicações oficiais acabam criando em torno do caso. O maior dos enigmas continua de pé desde o primeiro dia: por que motivo todo o esforço oficial está em tentar encobrir a identidade de quem, dentro do Palácio do Planalto, mandou produzir o dossiê? Fatos são coisas teimosas. Eles não somem por decreto.


Na semana passada, a Folha de S.Paulo publicou fotografias de telas de computadores instalados na Casa Civil da Presidência da República. As imagens foram usadas pelo jornal para sustentar que o dossiê não foi roubado por nenhum agente secreto. Ele existe nos discos rígidos dos computadores da Casa Civil da forma como veio a público e como VEJA divulgou há duas semanas. Em vez de armazenar dados universais, como seria o caso de um banco de dados administrativo, o dossiê concentra-se em gastos com miudezas, como produtos de higiene pessoal, e despesas com bebidas alcoólicas, comidas raras, restaurantes caros e hotéis de luxo, entre outros itens potencialmente desconcertantes quando pagos com dinheiro público. As fotografias mostram que o dossiê começou a ser produzido na Casa Civil no dia 11 de fevereiro passado, conforme relatado por VEJA em sua última edição, e revelam o horário exato em que o arquivo digital foi criado – 15h28. No total, o arquivo tem 532 lançamentos distribuídos em 27 páginas. Há pastas específicas nas quais estão armazenados gastos da ex-primeira-dama Ruth Cardoso, de três ex-ministros do governo tucano e até da ex-chef da cozinha do Palácio da Alvorada, Roberta Sudbrack.
Até a semana passada, as versões oficiais protegiam a secretária executiva da Casa Civil, Erenice Guerra, a principal suspeita de ter comandado a operação que vasculhou as despesas sigilosas de Fernando Henrique, seus ministros e familiares. A ministra admitiu que Erenice coordenava a produção de um banco de dados sobre gastos dos governos atual e passado, mas negou que sua principal assessora tenha produzido o dossiê. As novas evidências de que o dossiê foi produzido e armazenado dentro da Casa Civil, em um sistema fora da malha de dados oficial, complicaram ainda mais o caso. Na sexta-feira passada, a ministra Dilma Rousseff convocou uma entrevista coletiva para passar a limpo a questão. Sempre assertiva e clara em suas explicações sobre as ações do governo, a ministra esteve irreconhecível na entrevista. Dilma disse que "as pastas de computador" – ela não aceita a expressão dossiê para designar a compilação de dados – publicadas na imprensa podem ser "falsas ou verdadeiras", como se houvesse um terceiro estado para esse tipo de coisa. "Não descartamos nenhuma hipótese", afirmou ela. Sobre o responsável pelo dossiê, admitiu que pode ser obra de algum "agente secreto com crachá", mas não forneceu detalhes sobre essa suspeita.
A verdade é que o governo, até agora, se esforçou apenas para descobrir a identidade de quem repassou as informações do dossiê à imprensa, e capitula na hora de tentar apontar quem o produziu. Ainda sob o pretexto de encontrar o "vazador", seria natural que a Polícia Federal fosse chamada para investigar o caso. Peritos criminais poderiam acessar os computadores do Palácio do Planalto e colher pistas sobre o autor do dossiê – ou "vazador" como prefere o Planalto. Em vez de acionar a PF, a Casa Civil optou por manter a investigação sob seu controle, instaurando apenas uma sindicância. Um dos servidores que acompanharam de perto a produção do dossiê, ouvido por VEJA, diz que os funcionários envolvidos, oito no total, ameaçam detalhar a cadeia de comando da produção do dossiê caso alguém, que apenas cumpriu ordens, seja responsabilizado pelo escândalo. Pode estar aí a explicação para a cortina de fumaça que se tenta criar.

Zombando de nós, por André Petry

O gangsterismo político de montar um dossiê com os gastos do ex-presidente Fernando Henrique e sua mulher só foi possível porque existe a lei do sigilo das despesas presidenciais. E por que os gastos da família presidencial precisam ser secretos? Por razões de segurança, diz o governo. Além do decreto do sigilo, de 1967, o atual governo, em 2003, editou uma norma reforçando que tais gastos são sigilosos – por razões de segurança. De 2003 para cá, Lula e família gastaram 11,6 milhões de reais e, por razões de segurança, o país não sabe com quê.Se divulgar tais despesas comprometesse a segurança, a rainha da Inglaterra já teria ido pelos ares numa carruagem-bomba. Em 2002, ano em que Lula venceu a primeira eleição presidencial, a rainha da Inglaterra divulgou seus gastos pela primeira vez. Disse que passaria a fazê-lo todos os anos como prova de seu comprometimento com a transparência no trato do dinheiro público. Como se sabe, a rainha da Inglaterra não é eleita, nem precisa de votos. Mas precisa de respeito.Naquele primeiro ano, sua prestação de contas ocupava mais de 160 páginas. Trazia minúcias. Informava que o gasto com vinho e outras bebidas caíra de 135.000 libras para 97.000. Deliciosamente, explicava que a queda não se devia à redução no consumo, mas à baixa qualidade da safra, o que levou a rainha a reduzir o tamanho da adega. Em festas no jardim, a rainha gastou 442.000 libras. Em aluguel de tendas para as festas, 5.000 libras menos que no ano anterior, porque trocou as tendas coloridas pelas de uma cor só, que são mais baratas. Com lavanderia, a família real gastou 61 000 libras. Energia elétrica, 323 000 libras. Telefone, 690 000. Veterinário para os cavalos, 19 000. Aluguel de helicóptero para uma viagem do duque de Kent, 5 278 libras – e mais a explicação de por que o duque foi de helicóptero e não de carro ou trem, que é mais barato.De 2002 para cá, a divulgação dos gastos da realeza britânica tem sido sempre assim: anual, pública e detalhada. Só não contempla tudo porque exclui – adivinha o quê? – os gastos com segurança. Não se informa nem o montante geral, para não dar pista aos terroristas sobre a dimensão do aparato que protege a família real. O resto todo, os ingleses ficam sabendo. Alguns contestam. Os republicanos dizem que o gasto de 2007, de 37,3 milhões de libras, é "fantasia". Alegam que, na verdade, a despesa é quatro vezes maior. Pode ser. Mas nem monarquistas nem republicanos dizem que divulgar gasto com helicóptero ou vinho ameaça a segurança.Pode-se alegar que o atual modelo de sustento da família real na Inglaterra foi estabelecido em 1760, no reinado de George III, e que se passaram 250 anos para que se desse publicidade aos gastos. Mas, se uma velha monarquia é capaz de sintonizar-se com os novos tempos, é razoável que um governo republicano de uma democracia jovem também o seja. A menos que esteja promovendo uma folia com o dinheiro público – ou não queira abrir mão do gangsterismo político. O resultado é que zombam de nós. Os brasileiros conhecem o gasto da rainha da Inglaterra com vinho, mas o governo nos diz que não podemos conhecer o gasto de Lula com champanhe – só o de FHC, claro.

Zombando de nós, por André Petry

O gangsterismo político de montar um dossiê com os gastos do ex-presidente Fernando Henrique e sua mulher só foi possível porque existe a lei do sigilo das despesas presidenciais. E por que os gastos da família presidencial precisam ser secretos? Por razões de segurança, diz o governo. Além do decreto do sigilo, de 1967, o atual governo, em 2003, editou uma norma reforçando que tais gastos são sigilosos – por razões de segurança. De 2003 para cá, Lula e família gastaram 11,6 milhões de reais e, por razões de segurança, o país não sabe com quê.Se divulgar tais despesas comprometesse a segurança, a rainha da Inglaterra já teria ido pelos ares numa carruagem-bomba. Em 2002, ano em que Lula venceu a primeira eleição presidencial, a rainha da Inglaterra divulgou seus gastos pela primeira vez. Disse que passaria a fazê-lo todos os anos como prova de seu comprometimento com a transparência no trato do dinheiro público. Como se sabe, a rainha da Inglaterra não é eleita, nem precisa de votos. Mas precisa de respeito.Naquele primeiro ano, sua prestação de contas ocupava mais de 160 páginas. Trazia minúcias. Informava que o gasto com vinho e outras bebidas caíra de 135.000 libras para 97.000. Deliciosamente, explicava que a queda não se devia à redução no consumo, mas à baixa qualidade da safra, o que levou a rainha a reduzir o tamanho da adega. Em festas no jardim, a rainha gastou 442.000 libras. Em aluguel de tendas para as festas, 5.000 libras menos que no ano anterior, porque trocou as tendas coloridas pelas de uma cor só, que são mais baratas. Com lavanderia, a família real gastou 61 000 libras. Energia elétrica, 323 000 libras. Telefone, 690 000. Veterinário para os cavalos, 19 000. Aluguel de helicóptero para uma viagem do duque de Kent, 5 278 libras – e mais a explicação de por que o duque foi de helicóptero e não de carro ou trem, que é mais barato.De 2002 para cá, a divulgação dos gastos da realeza britânica tem sido sempre assim: anual, pública e detalhada. Só não contempla tudo porque exclui – adivinha o quê? – os gastos com segurança. Não se informa nem o montante geral, para não dar pista aos terroristas sobre a dimensão do aparato que protege a família real. O resto todo, os ingleses ficam sabendo. Alguns contestam. Os republicanos dizem que o gasto de 2007, de 37,3 milhões de libras, é "fantasia". Alegam que, na verdade, a despesa é quatro vezes maior. Pode ser. Mas nem monarquistas nem republicanos dizem que divulgar gasto com helicóptero ou vinho ameaça a segurança.Pode-se alegar que o atual modelo de sustento da família real na Inglaterra foi estabelecido em 1760, no reinado de George III, e que se passaram 250 anos para que se desse publicidade aos gastos. Mas, se uma velha monarquia é capaz de sintonizar-se com os novos tempos, é razoável que um governo republicano de uma democracia jovem também o seja. A menos que esteja promovendo uma folia com o dinheiro público – ou não queira abrir mão do gangsterismo político. O resultado é que zombam de nós. Os brasileiros conhecem o gasto da rainha da Inglaterra com vinho, mas o governo nos diz que não podemos conhecer o gasto de Lula com champanhe – só o de FHC, claro.